Stuart B. Schwartz
A difícil tarefa de entender o Brasil
A difícil tarefa de entender o Brasil
“Que país interessante!”, exclamou o jovem estudante de pós-graduação, encantado com “Orfeu Negro”, que assistiu em Nova York nos anos 1960. Chegando ao Brasil por caminhos tortuosos, o historiador norte-americano Stuart B. Schwartz, hoje professor na Universidade de Yale, acabou adotado pela Bahia e se orgulha do título de cidadão da cidade de Salvador.
Versátil, ele não se restringe a um tema: escreveu sobre a economia e a justiça coloniais, disputas entre portugueses e espanhóis, tolerância religiosa, cultura popular, e ainda prepara uma história social dos furacões no Caribe! Entre suas pesquisa recentes, um ivro "saindo do forno" sobre cultura popular e tolerância no mundo ibérico. Documentos descobertos por ele em Portugal mostra, pessoas simples em total desacordo com o rigor religiosos das autoridades da época, gente pobre que acreditava que não havia apenas uma forma de se reacionar com Deus, com os parceiros e, o mais "perigoso" com o Estado.
Além de estudar o passado, Stuart não se furta a observar o presente: ciente das desigualdades sociais geradas no país pelos três sécuos de escravidão, ele não acredita que os problemas possam ser resolvidos por meio da adoção de medidas importadas dos Estados Unidos.
Em Niterói para um colóquio da Companhia das Índias (núcleo de História Moderna sediado na UFF), o professor Schwartz conversou com a Revista de História e, diante do entardecer na Baía de Guanabara, mandou um recado: a maior responsabilidade de cada geração de historiadores é formar outra ainda melhor.
Revista de História – Antes de visitar o Brasil o Sr. já conhecia outros países da América Latina?
Stuart Schwartz – Conhecia o México, mas minha primeira experiência fora dos Estados Unidos foi no Haiti, em 1952. Eu tinha dez anos. Meu pai fazia parte de um grupo dos médicos que iam todo ano a um país diferente para assistir crianças pobres. Lembro ainda da chegada à baía de Porto Príncipe. Era de noite, os tambores soavam. Lembro das luzes da cidade e dos meninos chegando em canoas para pedir esmola ao pessoal dos barcos e mergulhando, para pegar as moedas que atiravam. Foi a minha primeira experiência fora dos Estados Unidos. Foi aí que a América Latina começou a me atrair.
RH – Já se interessava por história nessa época?
SS – Já, mas meu interesse original era por autores de romances históricos – como Dumas, Stevenson e outros. Por influência do meu pai. Além das revistas de medicina, ele só gostava de ler sobre história, não história acadêmica, mas história popular, biografias etc.
RH – Quando o Sr. descobriu o Brasil?
SS – No início dos anos 1960, quando fui fazer mestrado na Universidade de Columbia, em Nova York. Havia um programa de pós-graduação em história da América Latina com o professor Lewis Hanke, grande especialista no assunto. Nessa época, ele achava que o Brasil não era bem estudado nos Estados Unidos. Aconselhado por ele, fiz então um curso intensivo de português, de seis semanas. Este foi o meu primeiro contato com o Brasil. Exatamente nesse período, estavam passando em Nova York dois filmes brasileiros: Orfeu negro e O cangaceiro. Fiquei impressionado: “Mas que país interessante!”. A beleza física, a música, a maneira da gente se comportar na rua, tudo isso bem no momento da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos.
RH – Então deu para o Sr. comparar os dois países...
SS – Fiz uma certa analogia, vi no filme inclusive alternativas à situação das relações raciais no meu país. Foi exatamente nesse sentido que começou meu interesse pelo Brasil. Minha intenção original era trabalhar com o México, um país que eu já conhecia. Mas, muito por influência do Hanke, escolhi como tema de doutorado o Brasil sob o domínio espanhol, a chamada União Ibérica, entre 1580 e 1640. Para isso, era mais importante ir a Portugal do que vir ao Brasil, porque lá estava a documentação mais importante. No final das contas, minha tese de doutorado foi sobre o Tribunal de Relação da Bahia, e não sobre o domínio espanhol no Brasil.
RH – Então o Sr. descobriu o Brasil através de Portugal...
SS – De certa forma sim. Foi em Portugal que conheci os primeiros brasileiros, entre outros Anita Novinsky, Luis Mott e Luiz Henrique Dias Tavares, o grande historiador da Bahia. Todos eram meus conselheiros. Então, quando cheguei aqui, falando com sotaque de português, já conhecia vários brasileiros e tinha contatos por aqui. No Rio, meu primeiro contato foi com o professor José Honório Rodrigues.
RH – O Sr. disse uma vez que esse contato foi bem revelador...
SS – Realmente. Cheguei com uma carta de apresentação do Hanke, porque ele conhecia bem o José Honório. Telefonei do hotel dizendo: “Sou aluno de Louis Hanke e estou aqui no Brasil pela primeira vez. Gostaria muito de conhecer o senhor”. Aí ele disse: “Ah, infelizmente, amanhã eu vou para a América Latina”. Fiquei muito confuso, porque eu acabava de chegar à América Latina, isto é, ao Brasil, e ele estava indo para lá – senão me engano para a Bolívia ou Peru. Essa foi a minha introdução á maneira como os brasileiros se consideram frente à América Latina.
RH – O momento da sua formação acadêmica foi politicamente dramático, especialmente aqui no
Brasil. No seu país, como a Guerra Fria influía no trabalho do historiador?
SS – O Thomas Skidmore, que é um historiador americano muito conhecido aqui no Brasil, disse uma vez: “Somos os afilhados de Fidel”. De uma certa maneira é verdade, porque essa geração universitária americana que estava entrando na pós-graduação no momento imediatamente posterior à Revolução Cubana, em 1959, se deu conta de uma realidade nova. O governo americano estava muito preocupado: “O que aconteceu na América Latina?”; “O comunismo está chegando a América Latina?”. Então investiu mais na educação secundária e concedeu bolsas para estudo do português e do espanhol, coisa que não existia antes. O interessante é que aqueles que foram formados com o apoio do governo, quase todos se voltariam contra ele depois. Nesse sentido Skidmore tem razão: somos de fato os afilhados de Fidel.
RH – Aqui no Brasil o Sr. passava a maior parte do seu tempo em Salvador. Qual foi sua impressão inicial da Bahia?
SS – Acho que para os americanos em geral a Bahia é um pedaço da África separado do continente, um lugar exótico. Há os que se entusiasmam, gostam muito, e outros que detestam, porque acham a Bahia quente, suja etc. Eu de cara entrei para aquele primeiro time. Para mim, a Bahia era um paraíso, lá eu sempre me senti em casa. Por sinal, há uns cinco anos recebi uma homenagem lá em Salvador. Agora, sou um cidadão soteropolitano!
RH – Como naquela música do Gilberto Gil, a Bahia lhe deu régua e compasso, não é assim?
SS – Exatamente. Mas devo também muitas coisas a muita gente, como à minha amiga Neuza Esteves, grande profissional e grande baiana, hoje diretora do arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Ela me ajudou muito quando me voltei para o tema dos engenhos do Nordeste e fui pesquisar em arquivos do Recôncavo Baiano, que nesse tempo não eram muito procurados. Tive a maior sorte, pois encontrei documentos valiosíssimos e totalmente abandonados, na Câmara de Cachoeira.
RH – Não tinham ainda sido descobertos pelos historiadores baianos...
SS – É, infelizmente na Bahia não há um grupo, como aqui no Rio e em São Paulo, concentrado na história colonial. É uma pena, porque a Bahia tem uma riqueza de documentação colonial como não existe em outra parte do país.
RH – O Sr. acha os historiadores brasileiros, em relação aos brasilianistas, davam pouca importância à documentação dos arquivos?
SS – Aconte o seguinte. A historiografia, no Brasil, se dividia entre os filhos de Varnhagen e os filhos de Capistrano, e estes últimos haviam ganho a batalha. Lá pelos anos 1930, o ensaio era o desejo supremo do historiador brasileiro. Sérgio Buarque de Hollanda era um grande historiador, mas sobretudo um ensaísta, que por sinal escrevia muito bem. Casa grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre, não é um livro de arquivo, mas um ensaio. Acho que fiz parte de um período de retorno aos arquivos. Isso não se deu só entre os brasilianistas. O livro de Fernando Novais sobre o antigo sistema colonial, de 1979, é um trabalho de fôlego em matéria de pesquisa. José Antônio Gonsalves de Mello e José Honório Rodrigues também trabalhavam assim.
RH – Na sua opinião, o que unifica a América Latina?
SS – A América Latina é unificada pela sua experiência cronológica. Ela nasceu no momento da Revolução Atlântica, e todos os países daqui compartilham uma certa conexão com as idéias liberais do fim do século XVIII e início do século XIX. A democracia, mesmo durante os períodos autoritários, foi sempre oferecida como um ideal da sociedade. Lembro muito bem que quando Allende foi eleito presidente do Chile. No primeiro discurso, ele falou do processo democrático e da importância constitucional do seu governo. Quando Allende foi deposto pelos militares, a primeira fala de Pinochet foi exatamente igual: “Vamos obedecer a constituição e defender os princípios democráticos”. Então, isso é uma coisa que une a América Latina, assim como a sombra dos Estados Unidos. Esta relação com os Estados Unidos, seja ela boa ou má, tem de ser reconhecida.
RH – O Sr. tem um livro importante sobre o açúcar, lançado aqui com o título Segredos internos. Qual é a conexão entre a produção do açúcar no Novo Mundo e o desenvolvimento econômico europeu?
SS – Confesso que minha intenção com esse livro, no início, era demonstrar que o Gilberto Freyre estava errado, que ele realmente não tinha utilizado documentação dos arquivos, que ele tomava coisas do século XIX e as utilizava para analisar o século XVI. Era uma tentativa de atacar o Gilberto Freyre, foi um erro de juventude. Pouco a pouco eu percebi que, mesmo que tenha muita coisa errada no livro, ele tinha tocado em algo muito central, que é a importância da vida açucareira na formação da sociedade brasileira. Passei muito tempo tentando entender exatamente como que se produzia o açúcar. O título do livro vem de um texto do Marx. Marx dizia que o modo de produção é a chave para entender a sociedade como um todo. Então, é tudo ligado, formam um conjunto. Minha intenção era fazer um livro que vai da plantação do açúcar à produção da riqueza na colônia européia. Só não fiz porque o material não cabia dentro do livro, que chegou a mais de 600 páginas.
RH – Que diferenças o Sr., afinal, conseguiu estabelecer com Gilberto Freyre?
SS – O que falta em Casa grande & senzala é aquela gama de pessoas que não eram nem senhores e nem escravos. O mundo dos engenhos era cheio de vários grupos sociais. Eu acho que a minha contribuição principal é essa: o reconhecimento dos lavradores de cana, as pessoas livres que viviam às margens dos engenhos, artesãos, carreiros, ferreiros, ex-escravos que viviam também no mundo dos engenhos. Tudo isso é bastante ausente no livro de Gilberto Freyre. Ele trata do mundo do senhor e do escravo como se essa fosse a única relação naquela época. Eu acho que a minha contribuição foi aumentar aquela visão do Gilberto Freyre, para incluir essa gente também.
RH – É interessante que o Sr., mesmo que discorde de Gilberto Freyre, parte de um olhar brasileiro para abordar a questão do açúcar...
SS – Exato, meus interlocutores são os historiadores brasileiros, meu trabalho sempre foi feito tendo em vista a historiografia do país. Por exemplo, aquele ensaio sobre os pequenos produtores era uma resposta ao livro do Jacob Gorender sobre o escravismo colonial. Aliás, sempre enfatizo aos meus alunos que eles têm de ler os historiadores da América Latina antes dos historiadores americanos.
RH – Nos seus livros o Sr. dá ênfase às relações raciais no Brasil. Como elas interferiam na nossa sociedade?
SS – Não há relação social de hierarquia no Brasil que não seja marcada pela raça. Uma olhada rápida no mapa da distribuição da renda hoje mostra que a idéia de que aqui não existe racismo é um mito. Então, é impossível pensar a história do Brasil sem pensar na divisão racial no país e na maneira como o país, o povo e seus vários governos trataram de superar as divisões criadas pelo legado de escravidão. É a mesma coisa nos Estados Unidos. Só que a importação de modelos americanos para resolver essa questão não é a melhor saída para o Brasil – nem para a sociedade nem para o movimento negro. O contexto social é diferente nos dois países, e isto tem que ser reconhecido.
RH – Os grupos afro-descendentes no Brasil devem então se afirmar por meio de soluções próprias?
SS – Sim, acho que a afirmação da identidade étnica é uma escolha de cada pessoa. Pessoalmente, não gosto de discriminação de qualquer espécie, sobretudo quando baseada em questões de herança, seja ela da origem nacional, da cor da pele ou qualquer outra. Talvez o problema seja mais social do que racial, é uma questão muito complicada. Veja a diferença entre as políticas americana e francesa sobre o multiculturalismo – as duas têm produzido dificuldades, não sei qual é a melhor. Isso depende do contexto de cada sociedade. Cada sociedade deve busca a saída, a maneira de resolver as desigualdades que a economia social produziu.
RH – Além da questão racial há a tradição da cultura letrada, da magistratura, das hierarquias pesando na nossa história. Como isso afetou a sociedade brasileira?
SS – Como eu digo no prefácio do meu primeiro livro, no Brasil, quando uma coisa é considerada boa, diz-se que é “legal” [risos]. Isto mostra a importância da lei, do direito. Mas, ao mesmo tempo, lembro das palavras de Rui Barbosa – de que quando a justiça falta à mentalidade do juiz, não há esperança para o país – e daquele ditado antigo português – “Para os amigos, a justiça; para os inimigos, a lei”. Então, a lei escrita, que vem da tradição romana, é muito importante, mas sua boa aplicação também, senão descamba-se para a corrupção e o personalismo. A história do Brasil sempre foi assim. Nunca faltaram boas leis, o que faltou foi o desejo de aplicá-las com justiça. Se bem que a corrupção, seguramente, não é um problema só brasileiro. Meu país, no momento, atravessa sérias dificuldades nessa área.
RH – O Sr. está escrevendo algum livro novo?
SS – Sim, já está no prelo. Intitula-se Sua lei – salvação e tolerância no mundo atlântico ibérico. É sobre pessoas que, enquanto os padres diziam que a salvação só era possível dentro da Igreja, tinham idéias próprias sobre religião, sobre o corpo, sobre o sexo. Descobri isso pesquisando documentos da Inquisição em Portugal. No final, chegando ao século XVIII, essas idéias começam a crescer, e pessoas aqui no Brasil começaram a pensar em liberdade de consciência: “Eu quero pensar o que quero e pronto”. Afinal, essas idéias ligaram-se às idéias de liberdade política, que era a grande ameaça ao Estado e ao altar.
RH – Era o pensamento radical da época...
SS – Radical, muito radical. E o mais interessante, para mim, é que isso não vinha de cima para baixo, não era idéia de humanistas, de um Erasmo, por exemplo, de um Locke ou de um Voltaire. Os dissidentes eram alfaiates, ferreiros, pessoas que podiam até saber ler e escrever mas não tinham formação universitária nem teológica. Chegavam a essas conclusões só pelo raciocínio. Não viam sentido na idéia de que o Deus misericordioso apregoado pela religião oficial pudesse mandar tanta gente para a fogueira.
RH – A tolerância de que o Sr. fala no livro se refletiu aqui, no momento em que o Estado brasileiro se organizava?
SS – Apesar do título, meu livro não é um argumento de que se tratava de uma sociedade tolerante. Pelo contrário, toda a força do governo e da Igreja era contra a tolerância. Mas, mesmo assim, o impressionante é que existiam essas idéias de tolerância, e que elas, talvez, abriram a mentalidade dos colonos que chegaram aqui, no sentido de considerar que, além do que a Igreja pregava, havia outras maneiras de chegar ao sobrenatural.
RH – Parece que ainda hoje é assim...
SS – Ah, sim... Quando eu vivia na Bahia, presenciei um caso bem interessante. Aconteceu numa repartição pública. Entrei numa sala e estava tudo desarrumado, cheia de papéis pelo chão. “Pô, que horrível isso aqui, tudo sujo, o que está acontecendo?” Aí uma amiga explicou: “É que a encarregada da limpeza às vezes não aparece, mas ninguém mexe com ela, porque ela é mãe-de-santo”. Isso não é tolerância?
RH – O Sr. continua dando aulas sobre o Brasil no seu país?
SS – Dou um curso em Yale sobre o Brasil. Um curso rápido: toda a história do Brasil, de 1500 até o presente, em um semestre! [risos]. Acho que a responsabilidade de cada geração de historiadores é fazer a próxima geração melhor, em termos de metodologia, conhecimento, produção etc. A medida do sucesso da minha carreira não é simplesmente a minha produção, mas a produção da próxima geração de historiadores.
RH – Depois de tanto tempo e tantas mudanças, o Brasil continua a lhe fascinar?
SS – Cada vez mais. Na primeira aula, projeto sempre dez minutos de Orfeu negro, com aqueles morros do Rio de Janeiro, aquele papagaio cantando Tristeza não tem fim. Meus alunos gostam muito, o que não me surpreende. Como alguém pode não gostar de um país como este?
Publicado no site da Revista de História da Biblioteca Nacional em 2007.
Versátil, ele não se restringe a um tema: escreveu sobre a economia e a justiça coloniais, disputas entre portugueses e espanhóis, tolerância religiosa, cultura popular, e ainda prepara uma história social dos furacões no Caribe! Entre suas pesquisa recentes, um ivro "saindo do forno" sobre cultura popular e tolerância no mundo ibérico. Documentos descobertos por ele em Portugal mostra, pessoas simples em total desacordo com o rigor religiosos das autoridades da época, gente pobre que acreditava que não havia apenas uma forma de se reacionar com Deus, com os parceiros e, o mais "perigoso" com o Estado.
Além de estudar o passado, Stuart não se furta a observar o presente: ciente das desigualdades sociais geradas no país pelos três sécuos de escravidão, ele não acredita que os problemas possam ser resolvidos por meio da adoção de medidas importadas dos Estados Unidos.
Em Niterói para um colóquio da Companhia das Índias (núcleo de História Moderna sediado na UFF), o professor Schwartz conversou com a Revista de História e, diante do entardecer na Baía de Guanabara, mandou um recado: a maior responsabilidade de cada geração de historiadores é formar outra ainda melhor.
Revista de História – Antes de visitar o Brasil o Sr. já conhecia outros países da América Latina?
Stuart Schwartz – Conhecia o México, mas minha primeira experiência fora dos Estados Unidos foi no Haiti, em 1952. Eu tinha dez anos. Meu pai fazia parte de um grupo dos médicos que iam todo ano a um país diferente para assistir crianças pobres. Lembro ainda da chegada à baía de Porto Príncipe. Era de noite, os tambores soavam. Lembro das luzes da cidade e dos meninos chegando em canoas para pedir esmola ao pessoal dos barcos e mergulhando, para pegar as moedas que atiravam. Foi a minha primeira experiência fora dos Estados Unidos. Foi aí que a América Latina começou a me atrair.
RH – Já se interessava por história nessa época?
SS – Já, mas meu interesse original era por autores de romances históricos – como Dumas, Stevenson e outros. Por influência do meu pai. Além das revistas de medicina, ele só gostava de ler sobre história, não história acadêmica, mas história popular, biografias etc.
RH – Quando o Sr. descobriu o Brasil?
SS – No início dos anos 1960, quando fui fazer mestrado na Universidade de Columbia, em Nova York. Havia um programa de pós-graduação em história da América Latina com o professor Lewis Hanke, grande especialista no assunto. Nessa época, ele achava que o Brasil não era bem estudado nos Estados Unidos. Aconselhado por ele, fiz então um curso intensivo de português, de seis semanas. Este foi o meu primeiro contato com o Brasil. Exatamente nesse período, estavam passando em Nova York dois filmes brasileiros: Orfeu negro e O cangaceiro. Fiquei impressionado: “Mas que país interessante!”. A beleza física, a música, a maneira da gente se comportar na rua, tudo isso bem no momento da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos.
RH – Então deu para o Sr. comparar os dois países...
SS – Fiz uma certa analogia, vi no filme inclusive alternativas à situação das relações raciais no meu país. Foi exatamente nesse sentido que começou meu interesse pelo Brasil. Minha intenção original era trabalhar com o México, um país que eu já conhecia. Mas, muito por influência do Hanke, escolhi como tema de doutorado o Brasil sob o domínio espanhol, a chamada União Ibérica, entre 1580 e 1640. Para isso, era mais importante ir a Portugal do que vir ao Brasil, porque lá estava a documentação mais importante. No final das contas, minha tese de doutorado foi sobre o Tribunal de Relação da Bahia, e não sobre o domínio espanhol no Brasil.
RH – Então o Sr. descobriu o Brasil através de Portugal...
SS – De certa forma sim. Foi em Portugal que conheci os primeiros brasileiros, entre outros Anita Novinsky, Luis Mott e Luiz Henrique Dias Tavares, o grande historiador da Bahia. Todos eram meus conselheiros. Então, quando cheguei aqui, falando com sotaque de português, já conhecia vários brasileiros e tinha contatos por aqui. No Rio, meu primeiro contato foi com o professor José Honório Rodrigues.
RH – O Sr. disse uma vez que esse contato foi bem revelador...
SS – Realmente. Cheguei com uma carta de apresentação do Hanke, porque ele conhecia bem o José Honório. Telefonei do hotel dizendo: “Sou aluno de Louis Hanke e estou aqui no Brasil pela primeira vez. Gostaria muito de conhecer o senhor”. Aí ele disse: “Ah, infelizmente, amanhã eu vou para a América Latina”. Fiquei muito confuso, porque eu acabava de chegar à América Latina, isto é, ao Brasil, e ele estava indo para lá – senão me engano para a Bolívia ou Peru. Essa foi a minha introdução á maneira como os brasileiros se consideram frente à América Latina.
RH – O momento da sua formação acadêmica foi politicamente dramático, especialmente aqui no
Brasil. No seu país, como a Guerra Fria influía no trabalho do historiador?
SS – O Thomas Skidmore, que é um historiador americano muito conhecido aqui no Brasil, disse uma vez: “Somos os afilhados de Fidel”. De uma certa maneira é verdade, porque essa geração universitária americana que estava entrando na pós-graduação no momento imediatamente posterior à Revolução Cubana, em 1959, se deu conta de uma realidade nova. O governo americano estava muito preocupado: “O que aconteceu na América Latina?”; “O comunismo está chegando a América Latina?”. Então investiu mais na educação secundária e concedeu bolsas para estudo do português e do espanhol, coisa que não existia antes. O interessante é que aqueles que foram formados com o apoio do governo, quase todos se voltariam contra ele depois. Nesse sentido Skidmore tem razão: somos de fato os afilhados de Fidel.
RH – Aqui no Brasil o Sr. passava a maior parte do seu tempo em Salvador. Qual foi sua impressão inicial da Bahia?
SS – Acho que para os americanos em geral a Bahia é um pedaço da África separado do continente, um lugar exótico. Há os que se entusiasmam, gostam muito, e outros que detestam, porque acham a Bahia quente, suja etc. Eu de cara entrei para aquele primeiro time. Para mim, a Bahia era um paraíso, lá eu sempre me senti em casa. Por sinal, há uns cinco anos recebi uma homenagem lá em Salvador. Agora, sou um cidadão soteropolitano!
RH – Como naquela música do Gilberto Gil, a Bahia lhe deu régua e compasso, não é assim?
SS – Exatamente. Mas devo também muitas coisas a muita gente, como à minha amiga Neuza Esteves, grande profissional e grande baiana, hoje diretora do arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Ela me ajudou muito quando me voltei para o tema dos engenhos do Nordeste e fui pesquisar em arquivos do Recôncavo Baiano, que nesse tempo não eram muito procurados. Tive a maior sorte, pois encontrei documentos valiosíssimos e totalmente abandonados, na Câmara de Cachoeira.
RH – Não tinham ainda sido descobertos pelos historiadores baianos...
SS – É, infelizmente na Bahia não há um grupo, como aqui no Rio e em São Paulo, concentrado na história colonial. É uma pena, porque a Bahia tem uma riqueza de documentação colonial como não existe em outra parte do país.
RH – O Sr. acha os historiadores brasileiros, em relação aos brasilianistas, davam pouca importância à documentação dos arquivos?
SS – Aconte o seguinte. A historiografia, no Brasil, se dividia entre os filhos de Varnhagen e os filhos de Capistrano, e estes últimos haviam ganho a batalha. Lá pelos anos 1930, o ensaio era o desejo supremo do historiador brasileiro. Sérgio Buarque de Hollanda era um grande historiador, mas sobretudo um ensaísta, que por sinal escrevia muito bem. Casa grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre, não é um livro de arquivo, mas um ensaio. Acho que fiz parte de um período de retorno aos arquivos. Isso não se deu só entre os brasilianistas. O livro de Fernando Novais sobre o antigo sistema colonial, de 1979, é um trabalho de fôlego em matéria de pesquisa. José Antônio Gonsalves de Mello e José Honório Rodrigues também trabalhavam assim.
RH – Na sua opinião, o que unifica a América Latina?
SS – A América Latina é unificada pela sua experiência cronológica. Ela nasceu no momento da Revolução Atlântica, e todos os países daqui compartilham uma certa conexão com as idéias liberais do fim do século XVIII e início do século XIX. A democracia, mesmo durante os períodos autoritários, foi sempre oferecida como um ideal da sociedade. Lembro muito bem que quando Allende foi eleito presidente do Chile. No primeiro discurso, ele falou do processo democrático e da importância constitucional do seu governo. Quando Allende foi deposto pelos militares, a primeira fala de Pinochet foi exatamente igual: “Vamos obedecer a constituição e defender os princípios democráticos”. Então, isso é uma coisa que une a América Latina, assim como a sombra dos Estados Unidos. Esta relação com os Estados Unidos, seja ela boa ou má, tem de ser reconhecida.
RH – O Sr. tem um livro importante sobre o açúcar, lançado aqui com o título Segredos internos. Qual é a conexão entre a produção do açúcar no Novo Mundo e o desenvolvimento econômico europeu?
SS – Confesso que minha intenção com esse livro, no início, era demonstrar que o Gilberto Freyre estava errado, que ele realmente não tinha utilizado documentação dos arquivos, que ele tomava coisas do século XIX e as utilizava para analisar o século XVI. Era uma tentativa de atacar o Gilberto Freyre, foi um erro de juventude. Pouco a pouco eu percebi que, mesmo que tenha muita coisa errada no livro, ele tinha tocado em algo muito central, que é a importância da vida açucareira na formação da sociedade brasileira. Passei muito tempo tentando entender exatamente como que se produzia o açúcar. O título do livro vem de um texto do Marx. Marx dizia que o modo de produção é a chave para entender a sociedade como um todo. Então, é tudo ligado, formam um conjunto. Minha intenção era fazer um livro que vai da plantação do açúcar à produção da riqueza na colônia européia. Só não fiz porque o material não cabia dentro do livro, que chegou a mais de 600 páginas.
RH – Que diferenças o Sr., afinal, conseguiu estabelecer com Gilberto Freyre?
SS – O que falta em Casa grande & senzala é aquela gama de pessoas que não eram nem senhores e nem escravos. O mundo dos engenhos era cheio de vários grupos sociais. Eu acho que a minha contribuição principal é essa: o reconhecimento dos lavradores de cana, as pessoas livres que viviam às margens dos engenhos, artesãos, carreiros, ferreiros, ex-escravos que viviam também no mundo dos engenhos. Tudo isso é bastante ausente no livro de Gilberto Freyre. Ele trata do mundo do senhor e do escravo como se essa fosse a única relação naquela época. Eu acho que a minha contribuição foi aumentar aquela visão do Gilberto Freyre, para incluir essa gente também.
RH – É interessante que o Sr., mesmo que discorde de Gilberto Freyre, parte de um olhar brasileiro para abordar a questão do açúcar...
SS – Exato, meus interlocutores são os historiadores brasileiros, meu trabalho sempre foi feito tendo em vista a historiografia do país. Por exemplo, aquele ensaio sobre os pequenos produtores era uma resposta ao livro do Jacob Gorender sobre o escravismo colonial. Aliás, sempre enfatizo aos meus alunos que eles têm de ler os historiadores da América Latina antes dos historiadores americanos.
RH – Nos seus livros o Sr. dá ênfase às relações raciais no Brasil. Como elas interferiam na nossa sociedade?
SS – Não há relação social de hierarquia no Brasil que não seja marcada pela raça. Uma olhada rápida no mapa da distribuição da renda hoje mostra que a idéia de que aqui não existe racismo é um mito. Então, é impossível pensar a história do Brasil sem pensar na divisão racial no país e na maneira como o país, o povo e seus vários governos trataram de superar as divisões criadas pelo legado de escravidão. É a mesma coisa nos Estados Unidos. Só que a importação de modelos americanos para resolver essa questão não é a melhor saída para o Brasil – nem para a sociedade nem para o movimento negro. O contexto social é diferente nos dois países, e isto tem que ser reconhecido.
RH – Os grupos afro-descendentes no Brasil devem então se afirmar por meio de soluções próprias?
SS – Sim, acho que a afirmação da identidade étnica é uma escolha de cada pessoa. Pessoalmente, não gosto de discriminação de qualquer espécie, sobretudo quando baseada em questões de herança, seja ela da origem nacional, da cor da pele ou qualquer outra. Talvez o problema seja mais social do que racial, é uma questão muito complicada. Veja a diferença entre as políticas americana e francesa sobre o multiculturalismo – as duas têm produzido dificuldades, não sei qual é a melhor. Isso depende do contexto de cada sociedade. Cada sociedade deve busca a saída, a maneira de resolver as desigualdades que a economia social produziu.
RH – Além da questão racial há a tradição da cultura letrada, da magistratura, das hierarquias pesando na nossa história. Como isso afetou a sociedade brasileira?
SS – Como eu digo no prefácio do meu primeiro livro, no Brasil, quando uma coisa é considerada boa, diz-se que é “legal” [risos]. Isto mostra a importância da lei, do direito. Mas, ao mesmo tempo, lembro das palavras de Rui Barbosa – de que quando a justiça falta à mentalidade do juiz, não há esperança para o país – e daquele ditado antigo português – “Para os amigos, a justiça; para os inimigos, a lei”. Então, a lei escrita, que vem da tradição romana, é muito importante, mas sua boa aplicação também, senão descamba-se para a corrupção e o personalismo. A história do Brasil sempre foi assim. Nunca faltaram boas leis, o que faltou foi o desejo de aplicá-las com justiça. Se bem que a corrupção, seguramente, não é um problema só brasileiro. Meu país, no momento, atravessa sérias dificuldades nessa área.
RH – O Sr. está escrevendo algum livro novo?
SS – Sim, já está no prelo. Intitula-se Sua lei – salvação e tolerância no mundo atlântico ibérico. É sobre pessoas que, enquanto os padres diziam que a salvação só era possível dentro da Igreja, tinham idéias próprias sobre religião, sobre o corpo, sobre o sexo. Descobri isso pesquisando documentos da Inquisição em Portugal. No final, chegando ao século XVIII, essas idéias começam a crescer, e pessoas aqui no Brasil começaram a pensar em liberdade de consciência: “Eu quero pensar o que quero e pronto”. Afinal, essas idéias ligaram-se às idéias de liberdade política, que era a grande ameaça ao Estado e ao altar.
RH – Era o pensamento radical da época...
SS – Radical, muito radical. E o mais interessante, para mim, é que isso não vinha de cima para baixo, não era idéia de humanistas, de um Erasmo, por exemplo, de um Locke ou de um Voltaire. Os dissidentes eram alfaiates, ferreiros, pessoas que podiam até saber ler e escrever mas não tinham formação universitária nem teológica. Chegavam a essas conclusões só pelo raciocínio. Não viam sentido na idéia de que o Deus misericordioso apregoado pela religião oficial pudesse mandar tanta gente para a fogueira.
RH – A tolerância de que o Sr. fala no livro se refletiu aqui, no momento em que o Estado brasileiro se organizava?
SS – Apesar do título, meu livro não é um argumento de que se tratava de uma sociedade tolerante. Pelo contrário, toda a força do governo e da Igreja era contra a tolerância. Mas, mesmo assim, o impressionante é que existiam essas idéias de tolerância, e que elas, talvez, abriram a mentalidade dos colonos que chegaram aqui, no sentido de considerar que, além do que a Igreja pregava, havia outras maneiras de chegar ao sobrenatural.
RH – Parece que ainda hoje é assim...
SS – Ah, sim... Quando eu vivia na Bahia, presenciei um caso bem interessante. Aconteceu numa repartição pública. Entrei numa sala e estava tudo desarrumado, cheia de papéis pelo chão. “Pô, que horrível isso aqui, tudo sujo, o que está acontecendo?” Aí uma amiga explicou: “É que a encarregada da limpeza às vezes não aparece, mas ninguém mexe com ela, porque ela é mãe-de-santo”. Isso não é tolerância?
RH – O Sr. continua dando aulas sobre o Brasil no seu país?
SS – Dou um curso em Yale sobre o Brasil. Um curso rápido: toda a história do Brasil, de 1500 até o presente, em um semestre! [risos]. Acho que a responsabilidade de cada geração de historiadores é fazer a próxima geração melhor, em termos de metodologia, conhecimento, produção etc. A medida do sucesso da minha carreira não é simplesmente a minha produção, mas a produção da próxima geração de historiadores.
RH – Depois de tanto tempo e tantas mudanças, o Brasil continua a lhe fascinar?
SS – Cada vez mais. Na primeira aula, projeto sempre dez minutos de Orfeu negro, com aqueles morros do Rio de Janeiro, aquele papagaio cantando Tristeza não tem fim. Meus alunos gostam muito, o que não me surpreende. Como alguém pode não gostar de um país como este?
Publicado no site da Revista de História da Biblioteca Nacional em 2007.
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