domingo, 23 de maio de 2010

Entrevistas com o historiador Sidney Chalhoub


AEDOS: Entrevista com o historiador Sidney Chalhoub

Atílio Bergamini*, Eliete Lucia Tiburski** e Icaro Bittencourt***

Em uma breve visita à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em maio de 2008, na qual proferiu a conferência intitulada: História e Crônica: Machado de Assis, Sidney Chalhoub, historiador doutor pela Universidade Estadual de Campinas, autor dos livros como Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Epoque, Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte e maisrecentemente, Machado de Assis, historiador, entre outros, nos recebeu, gentilmente, para uma entrevista. Muito simpático e brincalhão, conversou durante uma hora sobre história, seus livros, escravidão e problemas brasileiros.

Revista Aedos (RAE): Uma das linhas de pesquisa do programa de pós-graduação em História da UFRGS intitula-se “Relações Sociais de Dominação e Resistência”. Uma das leituras obrigatórias dessa linha é o seu livro, Cidade Febril. Como este tema abrangente da dominação e da resistência perpassa o conjunto de sua obra?

Sidney Chalhoub (SC): Desde Trabalho, Lar e Botequim, escrito nos anos 80, o que me interessa são questões de política de domínio na sociedade e o modo de as pessoas lidarem com essa dominação: por história social eu entendo a necessidade de que as pesquisas históricas incluam a questão do que as pessoas fazem com o que fazem delas. Por um lado, é importante entender as políticas de dominação enquanto uma série de elementos presentes numa sociedade específica que conduzem a procedimentos de exclusão, de reprodução das desigualdades sociais, estruturas que reproduzem a distribuição desigual de recursos, privilégios, e como essas coisas mudam ao longo do tempo. Por outro lado, o que caracteriza a história social é incluir nesse universo a questão do que as pessoas fazem com o que fazem delas. Esse é o elemento que está presente em todas as pesquisas históricas que eu fiz até hoje, mesmo recentemente nos trabalhos utilizando literatura, como no Machado de Assis, historiador. Busco entender como a literatura de Machado representa, produz interpretações sobre como os dependentes, agregados, escravos lidavam com a política de dominação senhorial, paternalista, com as práticas e ideologias de dominação características da sociedade escravista brasileira.
Em Trabalho, Lar e Botequim havia uma cristalização menor dessas divisões entre perspectivas teóricas, não havia muito problema em incorporar num mesmo trabalho elementos foucaultianos, thompsonianos, que depois foram se cristalizando nessas igrejinhas que existem hoje na academia. Naquela época era importante ler Foucault e Thompson, bem como incorporar uma leitura da tradição antropológica, para lidar com a ideia de cultura, interpretada como cultura dos trabalhadores, dos escravos. Hoje em dia tudo cabe na palavra cultura. Naquele período ela estava muito ligada às pesquisas sobre valores, práticas, modos de comportamento dos subordinados, subalternos, trabalhadores, escravos, diante daquelas políticas de dominação. Acredito que uma leitura classista da sociedade ainda faz sentido, ao lado de outras, válidas e esclarecedoras também. Uma perspectiva marxista do processo histórico permanece importante. Esse é um fio condutor no meu trabalho, mas várias coisas acontecem e vão mudando as perspectivas e o modo de fazer.
No caso da escravidão, Visões da Liberdade é um livro muito voltado para as experiências dos escravos diante das instituições e dos modos de dominação que se encontravam na escravidão brasileira. Considero aqueles escravos enquanto ladinos, quer dizer, investigo o modo como eles aprendiam a lidar com as práticas de dominação da escravidão brasileira no século XIX. Mais recentemente, as pesquisas mais interessantes sobre escravidão são aquelas que partem da constatação de que a escravidão brasileira, até bem avançado o século XIX, era prioritariamente africana, e africana de várias etnias. Toda a influência do Thompson na historiografia social sobre a escravidão encontra certo limite nessa virada dos estudos sobre o tema. Nesse sentido é importante lidar com as duas dimensões, uma mais classista, de como esse escravo ladino lida com o que ele encontra do ponto de vista das possibilidades políticas, e ao mesmo tempo prestar atenção ao legado africano e como ele é rearticulado numa realidade completamente diferente. Cidade Febril foi minha tentativa de lidar com esse legado africano, de incorporá-lo à visão política dos populares. O terceiro capítulo, sobre varíola, vacina, incorpora essa perspectiva que desde o início dos anos 90 tornou-se muito forte na Unicamp, em grande medida por causa da influência de Robert Slenes. Sobre Visões da Liberdade, Robert Slenes brincava comigo ao dizer jocosamente que era um ótimo livro, muito bem argumentado, muito bem orientado (ele orientou meu trabalho), mas cujos escravos podiam muito bem ser noruegueses, ou seja, a africanidade passou longe. Então, em certo sentido, Cidade Febril foi um esforço, em especial no terceiro capítulo, de lidar com essa carência que é evidente em Visões da Liberdade.

RAE: Como os desdobramentos atuais dos estudos sobre a escravidão o auxiliaram na sua leitura de Machado de Assis, conforme demonstra o seu livro Machado de Assis Historiador, quando problematiza a noção de paternalismo e a abordagem de Roberto Schwarz?

SC: No livro, eu acho que deixei menos claro do que deveria, talvez, minha diferença em relação aos trabalhos de Roberto Schwarz e John Gledson. Por um lado, naquele momento, havia um reconhecimento claro de que uma parte da crítica literária interessa muito ao historiador porque ela incorpora como necessidade da interpretação do texto literário, no caso, os textos do Machado, as referências históricas diretas, bastante pesquisadas pelo Gledson. Também nos interessa a perspectiva de Schwarz de que a forma do texto literário é de alguma maneira uma expressão da lógica social, que tal forma tem um conteúdo social que precisa ser objeto de investigação do estudioso do texto literário. Ao escrever meu livro sobre Machado reconheci essa dívida intelectual com o Schwarz e o Gledson, mas acho que fui menos claro do que deveria quanto ao que me separa deles− depois, pelas leituras que fazem do livro, você começa a considerar que algumas coisas deveriam ter sido mais explicadas.
Existem várias diferenças, posso mencionar algumas. Uma primeira diferença: Roberto Schwarz, ao conceber o Ao vencedor as batatas e depois Um mestre na periferia do capitalismo, tinha disponível sobre a sociedade brasileira do século XIX os trabalhos de Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional, e o de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata, um falando sobre escravidão, o outro sobre o universo dos homens livres pobres. Desses dois livros, à luz de tudo o que se tem escrito e estudado sobre a sociedade brasileira do século XIX nos últimos 20 ou 25 anos, do acúmulo de produção, eu diria, com um pouco de maldade, mas não muita, que não resta quase nada. Do ponto de vista da representação da escravidão, abordei em Visões da liberdade a construção da teoria do escravo-coisa, essa dificuldade em investigar o escravo como sujeito político. Isto quanto ao livro de Fernando Henrique Cardoso. No caso de Maria Sylvia de Carvalho Franco, havia a perspectiva da experiência da dependência nessa sociedade como uma experiência de falta de regras, de violência desregrada, de anomia, que não se sustenta, inclusive na própria leitura dos processos criminais que ela usa. Dialoguei bastante com o livro de Maria Sylvia já em Trabalho, lar e botequim. Ela estuda os processos criminais e descobre neles uma lógica de violência na sociedade caipira do interior de São Paulo. Em Trabalho, lar e botequim há uma preocupação muito explícita em mostrar como aquela violência que aparece nos processos é muito regrada, é informada por uma série de concepções a respeito do que é legítimo, do que é justo, que os populares mobilizam. A solução violenta de conflitos é uma das possibilidades dentro de um universo muito variado de regras de conduta. Enfim, o texto de Maria Sylvia é metodologicamente complicado e interpreta a sociedade brasileira oitocentista de modo equivocado, só pertinente, talvez, àquele momento de discussão a respeito do assunto.
Voltando ao Roberto Schwarz, esses eram os textos que ele tinha disponíveis, digamos, para montar o tipo de análise que aparece em Ao vencedor as batatas. Já na introdução, “As ideias fora do lugar”, há uma série de problemas conceituais que comprometem toda a arquitetura da interpretação. Ele parte de três conceitos - escravidão, favor e liberalismo - para construir a ideia de que a literatura brasileira do século XIX não tematizava a escravidão porque tal instituição seria contrária à civilização, ao progresso, e era embaraçoso abordar esse tema, constrangedor para o Brasil diante do mundo Ocidental, inviável para uma literatura que queria participar na construção de uma identidade nacional. O favor seria um nexo possível de abordar – mais simpático, segundo a expressão que ele utiliza.
Um problema importante no raciocínio de Schwarz é a contraposição radical entre escravidão e liberdade, construção ideológica do século XIX que impossibilita ver a atuação política dos dependentes em geral – escravos e livres. Para começar, com frequência as fronteiras entre escravidão e liberdade eram muito tênues na experiência dos negros no século XIX, tênues mesmo para o homem livre pobre em geral, que quando não era negro continuava a ter a sua liberdade ameaçada pela prática do recrutamento forçado (às vezes visto como outra forma de escravidão ou trabalho compulsório em documentos da época). Na sociedade escravista brasileira era possível revogar alforrias concedidas, a escravização ilegal era rotineira, o risco de retornar à escravidão por suspeita de ser “escravo fugido” era lancinante para muitos. Havia também a prática comum da alforria condicional, que deixava sempre uma massa de indivíduos numa situação intermediária, incerta, entre a escravidão e a liberdade. E liberdade era conceito complicado, limitado pela ideia de vadiagem e pelo procedimento rotineiro do poder público de utilizar o trabalho de prisioneiros, sentenciados ou não, em obras públicas e serviços públicos diversos – além do recrutamento forçado, outro limitante da tal liberdade que já mencionei. Enfim, a marcação de uma divisão clara entre o universo da escravidão e o universo do favor cria problemas graves de entendimento da sociedade brasileira oitocentista. O que eu mostro no livro é que a política de domínio, do ponto de vista estrutural, é semelhante nos dois casos. A representação do subalterno, do inferior, do dominado, ou seja lá que nome você queira usar, o mostra como um dependente, e o escravo é pensado como o mais dependente entre os dependentes. No universo ideológico, digamos, a escravidão orienta a percepção de todas as relações desiguais como relações de dependência. É ela que estrutura até mesmo a visão do que é a experiência da liberdade, que pouco tem a ver com autonomia, com direito de ir e vir, mas sim com segurança na dependência, ou com menor precariedade na dependência. Quando você postula uma separação radical entre escravidão e favor, entre escravos e dependentes, você cria uma dificuldade grande para entender como essa sociedade de fato funcionava.
Há também em Schwarz uma definição totalmente abstrata de liberalismo, algo que nunca existiu em lugar nenhum. Quer dizer, liberalismo, do jeito como o Schwarz o imagina no texto famoso, “As ideias fora do lugar”, nunca existiu historicamente. Existiu só em teoria, nos textos dos clássicos. O liberalismo conviveu com a escravidão e outras formas de dependência no mundo ocidental ao longo de todo o século XIX, seja nas metrópoles, seja nas colônias, e tal estado de coisas continuou depois, no imperialismo muita vez genocida praticado a partir do final do século XIX. No Brasil, e alhures, a última trincheira de defesa da escravidão foi o liberalismo, defendia-se a escravidão em nome do direito constitucional à propriedade privada. Liberalismo e escravidão se combinaram historicamente, coexistiram, alimentaram-se mutuamente. O resto é abstração teórica, talvez conveniente, apenas.
Então essa distinção rígida acarreta uma porção de problemas. De novo, com um pouco de maldade, mas só um pouco, interpreta-se essa sociedade apenas a partir dos desejos e do imaginário da casa grande. A ideologia senhorial se projeta sobre a realidade inteira, a fantasia dos senhores de criar um mundo ao seu talante torna-se, por exemplo, o capricho ou a volubilidade de Brás Cubas. Ora, na prática, no cotidiano da dominação, o proprietário que imaginava que os escravos não eram alteridade em relação a ele arriscava o próprio pescoço. Para governar os seus trabalhadores – dependentes livres e escravos -, o senhor de terras e de gente tinha de lidar politicamente com os escravos e os agregados, vê-los como sujeitos políticos capazes de impor limites aos castigos físicos, reivindicar alforrias em determinadas situações. O senhor de escravos sabia que tinha a prerrogativa da violência, que podia torturar trabalhadores, que podia comprar e vender escravos, decidir libertá-los ou não; mas também sabia que essas prerrogativas eram regradas por tensões cotidianas, vazadas pela questão da luta de classes, informadas pela percepção que os escravos tinham de sua condição, o que impunha certos limites ao modo como esse domínio se exercia. Nenhum senhor de escravos real jamais poderia prevalecer, exercer domínio, sem reconhecer no escravo um sujeito político, com o qual ele tinha de lidar.
Vejamos, por exemplo, a questão da volubilidade do narrador nas Memórias póstumas, tão central à interpretação que Schwarz oferece para o romance. Por um lado, a leitura de Schwarz enriquece o sentido do romance ao mostrar o caráter classista da visão de mundo do narrador, que expõe sem peias a ideologia senhorial, o modo como a classe senhorial imaginava o mundo, como ela gostaria que ele fosse. Por outro lado, quando Machado imagina um narrador em primeira pessoa, ele coloca no centro das possibilidades de leitura a questão do limite de perspectiva do narrador. Esse limite de perspectiva, até onde vai o Schwarz, é um limite de perspectiva oriunda da ideologia de classe desse sujeito. Todavia, como tal visão é ideológica, classista, limitada por esses parâmetros, esse narrador, à revelia de suas intenções, informa muita coisa que acontece ao redor dele e que ele não logra interpretar como alteridade em relação à sua própria maneira de ver as coisas. É como se Machado construísse o texto para requerer do leitor que ele lesse o testemunho ficcional de Brás Cubas como um testemunho histórico. Ou seja, é preciso ler o texto à revelia da intenção do narrador ficcional.
Por exemplo, seria possível contar uma história das dificuldades de entendimento do Brás sobre o que ocorre ao redor dele acompanhando a história da relação dele com as mulheres. É o que faço no terceiro capítulo do meu livro. Sem a perspectiva das mulheres, em geral exposta à revelia do narrador, eu não teria feito nada, porque é por meio delas que Machado cria condições de o leitor entender os limites da visão do narrador senhorial. No caso da Marcela, Brás só entendeu que ela fazia gato e sapato dele quando o pai o colocou a bordo de um navio para mandá-lo embora porque ele já tinha gasto muitos contos de réis com ela. Aí o narrador reconhece que foi enganado porque aprendeu por meio do pai dele que ela o tinha passado para trás. Quanto a Eugênia, ele nunca consegue sequer ter a ilusão de que a domina, o que o deixa muito perturbado. Foi a única mulher que Brás correu o risco de amar na vida, de fato. Ela representava uma alteridade irredutível, olhar altivo, alguém que não se deixaria dominar por ele e não fazia segredo disso. Para lidar com tal desafio, que inviabilizaria o seu ideal de domínio sobre as mulheres, Brás precisa livrar-se dela a qualquer custo, exorcizar a atração que sente por ela. Logo embarca em toda uma justificativa ideológica para desqualificá-la: ela é coxa e não pode, portanto, garantir uma reprodução higiênica; ela é filha natural, impura, não está socialmente à altura dele; enfim, ele tem que articular um discurso de negação do outro (ou da outra, mais precisamente) porque não tem como lidar com a ideia de alteridade. É a saída ideológica dele, mas a alteridade está lá, o tempo todo, para quem quiser ver; é ele, Brás, que não pode ou não quer ver. No caso de dona Plácida, é difícil imaginar alguém mais humilhada, mais desprovida de qualquer tipo de poder, mas é fácil demonstrar que havia uma porção de coisas que Dona Plácida fazia sem que Brás se desse conta. Coisas que ela fazia para obter o que interessava a ela, à revelia da vontade de Brás. Por exemplo, há aquela passagem em que Brás e Virgília têm um arrufo e dona Plácida diz que Virgília chorara muito devido à situação. Quando Brás encontra Virgília no dia seguinte, ele pede desculpas por tê-la feito chorar. A reação de Virgília é mais ou menos a seguinte: “Como assim? Jamais chorei por causa de você! Cresça!” (Risos). Aí Brás desconfia que Dona Plácida não fora fiel à verdade ao descrever a reação de Virgília, mas ele não consegue transformar isso num tema, em algo que ele precise compreender. Essa é a diferença entre Brás Cubas e Dom Casmurro. Dom Casmurro, situado em outro momento histórico, após o fim da escravidão e da monarquia, havia aprendido alguma coisa sobre antagonismo social, sobre a resistência dos dependentes. Então ele vira ideologia de classe com intenção de dolo.
Então, para fechar essa parte, há muitos aspectos nessa relação entre forma literária e lógica social que ficam ausentes da leitura do Schwarz porque o que ele tinha disponível para interpretar a sociedade brasileira do século XIX não permitiu que ele imaginasse outras possibilidades de interpretação dos textos machadianos. Eu poderia ter deixado isto mais claro no meu livro, como o faço quando dou aulas sobre o assunto. Meu livro sobre Machado, na verdade, foi construído em sala de aula, foi concebido ali. Em geral começando por uma leitura lenta de “As ideias fora do lugar”, durante duas ou três aulas, para dissecar cada parágrafo do texto, para mostrar porque ele não funciona como leitura da sociedade brasileira do século XIX.

RAE: Os seus trabalhos apontam para uma diversificação de abordagem dentro da história social, incluindo as relações de trabalho, literatura e a abordagem das doenças e práticas de cura. Outro aspecto importante parece ser o recuo temporal na abordagem desses temas, dando privilégio ao contexto da segunda metade do século XIX. O senhor concorda com essa caracterização de sua obra? E quais os possíveis desdobramentos desses elementos no que se refere a novas abordagens e novos temas para a sua pesquisa?

Quanto ao recuo temporal, há maneiras, digamos, jocosas e autoirônicas de dizer o que aconteceu (mas que são verdadeiras). Escrevi Trabalho, lar e botequim usando processos de homicídio da primeira década do século XX. Tive dificuldade de perceber mudanças históricas. Como mencionei na introdução de Visões da liberdade, só abordei mudanças em Trabalho, lar e botequim numa perspectiva muito estrutural. Então tive a ideia (muito criativa!) de espalhar as fontes no tempo, pois talvez assim passasse a perceber transformações históricas. Aí está o caminho que me levou à escravidão urbana em meu segundo livro. Hoje em dia sempre digo aos meus alunos que não percam nunca a chance de analisar alguma série documental espalhada por algumas décadas, porque assim se aprenderá algo sobre como as coisas variam no tempo. Esse procedimento puramente empírico pode dar origem a questões importantes de interpretação do processo histórico estudado. Em certo sentido, continuo indo para trás. As pesquisas que tenho feito agora, sobre escravização ilegal, utilizam fontes da primeira metade do século XIX, da década de 30, 40, 50.
No geral, porém, digo que sou um historiador social do século XIX brasileiro. Tudo do Oitocentos me interessa, do teatro lírico à escravidão. O desafio, cada vez mais, é ver o vínculo entre essas coisas – por exemplo, entre um texto machadiano, com todo seu investimento literário e distanciamento aparente da realidade, e documentos sobre escravização ilegal, entender como esses testemunhos históricos se articulam. Então acho que dificilmente conseguirei sair do século XIX, pois ainda há aí muito que eu tenho curiosidade de aprender.

RAE: No caso das crônicas, A Semana e Bons Dias, que foram utilizadas e analisadas também por Gledson, como o Senhor dialoga com ele?

Em primeiro lugar, minha dívida com Gledson é grande em relação às crônicas, porque eu me interessei por elas lendo os volumes que ele organizou. Ter as crônicas anotadas, com referências a fatos e personagens que aparecem nos jornais, é essencial para tornar esses textos legíveis para nós. Durante muito tempo eu dialoguei com o Gledson a respeito desses textos, mas esse diálogo não caminhou bem, pois ele compartilha de uma visão, que é muito comum na crítica literária, de tratar a crônica como gênero literário menor. Gledson não compartilha a hipótese de que há muita elaboração literária nesses textos, de que Machado constrói narradores neles que são personagens fictícias da história real. Esses narradores são uma alteridade radical em relação a Machado; não se pode confundir as ideias e ironias do narrador com as de seu autor. Há aí mediações inescapáveis, ou haverá sempre o perigo de ler as crônicas como testemunho mais ou menos direto das ideias do próprio Machado. Digamos que eu discorde do Gledson, crítico literário, por razões literárias – ou seja, acho que ele investe menos do que devia, no caso das crônicas, no sentido literário dos textos.
Isto não quer dizer que narrador de crônica é como narrador de romance. O narrador da crônica obedecia a um protocolo específico. Machado concebia um projeto para cada série, inventava um pseudônimo, atribuía um título à série, adotava algumas características retóricas para o discurso daquele narrador ficcional; enfim, criava uma personagem que se tornava testemunha fictícia da história real. Isto é diferente de narradores de romances, como Brás Cubas ou Dom Casmurro, que constroem a posteriori uma leitura de suas vidas. O projeto do narrador de crônica incorpora ao seu modo de ser a indeterminação do futuro, a incerteza sobre o sentido dos acontecimentos que testemunha. A situação é muito diferente do narrador de Dom Casmurro, que tem toda uma estratégia de texto da primeira à última linha. A estratégia do texto do cronista não pode estar formada, organizada dessa maneira, porque a história sobre a qual ele vai escrever ainda não aconteceu, ou está a se desenrolar à sua frente. Logo, minhas diferenças em relação ao Gledson na leitura das crônicas são radicais mesmo, pois acho que a leitura dele de fato insiste em ignorar o que há de elaboração literária nas crônicas do Machado. Você pode ver, nas introduções dele às crônicas anotadas, que essa questão nem se coloca, ele nem concebe isso como problema. O livro que na verdade chamou a atenção para isso foi o de Leonardo Pereira, Carnaval das Letras, no qual há um capítulo esclarecedor sobre a série Bons Dias, que Machado escreveu no final dos anos 1880. Mas esse debate é, à primeira vista, um pouco estranho, pois estou eu aqui, como historiador, a cobrar um olhar mais literário de um crítico literário. A estranheza, porém, não resiste a um minuto de reflexão sobre a prática atual do ofício de historiador. Nós sabemos, como historiadores, que todo o texto é uma narrativa, no sentido de ter que ser analisado nas suas intenções, nos seus protocolos, no seu modo retórico, na sua interlocução com outros textos. No caso da literatura, esse modo de fazer é literário e tem de ser analisado enquanto tal; um texto jurídico é informado por uma cultura jurídica pertinente, que o historiador tem de aprender a dominar para interpretar o sentido de seu testemunho; um ato administração acontece no bojo de cultura administrativa particular, que também tem de se tornar familiar ao historiador, e assim por diante. Em todos os casos, o historiador tem uma pauta semelhante de perguntas, mas as respostas serão sempre diferentes. Machado de Assis escreveu textos burocráticos, contos, crônicas, romances, poesia, teatro. Cada um desses gêneros oferece desafios próprios de interpretação. Esse autor real, Machado de Assis, criou uma série de autores ficcionais, autores modelos, putativos. E mesmo quando assinava o próprio nome, Machado de Assis, o fazia em gêneros diferentes, que impunham condições ao que podia ser dito, e como poderia ser dito, em cada um deles. O Machado de Assis que assinava uma crônica era muito diferente do que assinava um parecer do ministério da Agricultura. O mesmo autor real não era o mesmo autor-modelo em casos tão diferentes, em gêneros tão distintos. Pense, por exemplo, em José de Alencar, que escreveu crônica, romance, fez muitos discursos no parlamento, produziu textos de interpretação política, falou de tudo. É o mesmo Alencar de sempre? Sim e não. Em cada gênero, o exercício é totalmente diferente. Há algumas coisas que podem ser ditas num gênero e não em outros, e vice versa; há possibilidades que cada gênero faculta ou limita, e é isso que acarreta diferenças nas respostas às quais chegamos ao analisar os textos ou intervenções do mesmo autor real. Cada autor real pode ser uma multiplicidade de autores, reais ou fictícios, pronunciando-se em gêneros literários ou não.
Nada disso precisa levar a um ceticismo radical quanto à referencialidade do texto analisado, seja qual for o seu gênero; a cognoscibilidade de um testemunho, o modo como dá a ver a realidade alémtexto, não está em causa quando nos dispomos a ir fundo na análise de seus protocolos narrativos. Hoje em dia, a melhor maneira de chegar à verdade no conhecimento histórico é levar às últimas consequências os desafios relativistas. Se o texto é um artefato, um artifício, tanto melhor; ao analisá-lo enquanto tal, saberemos, quiçá, mais sobre o que há além dele, sobre a realidade à qual pertence de modo inescapável. O relativismo pós-moderno radical chique, enquanto epistemologia, é tentativa de transformar o vazio em conceito; é como atribuir a subnutrição a uma opção dietética, como li noutro dia num texto do Nelson Aguilar sobre os vazios da Bienal de São Paulo. Por outro lado, para o historiador social, o relativismo transformado em metodologia, em modo de interrogação do testemunho, é uma oportunidade, maior possibilidade de conhecimento verdadeiro – isto é, comprometido com a crítica e a transformação da sociedade.

* Mestrando em Letras na UFRGS com a pesquisa “O Legado de Brás Cubas”. Endereço eletrônico para contato: atiliobergamini@yahoo.com.br

** Mestrando em História na UFRGS com a pesquisa “Gonçalves de Magalhães e Francisco Adolfo de Varnhagen: a constituição de uma história do tempo presente no século XIX”. Endereço eletrônico para contato: elietelucia@hotmail.com

*** Mestrando em História na UFRGS com a pesquisa “Sociedades beneficentes operárias e formação do trabalho livre em Cachoeira (RS) na passagem do século XIX para o século XX”. Endereço eletrônico para contato: icarohistoria@gmail.com



Revista de História da Biblioteca Nacional: Entrevista com o historiador Sidney Chalhoub

Um ‘Bruxo’ na repartição

Sidney Chalhoub costuma dizer que é um historiador dos “restos”. Em boa parte da obra deste carioca – há muito radicado na Unicamp –, os protagonistas são operários, escravos, agregados, mulheres, dependentes de todo tipo. Por isso a surpresa que causou ao lançar, em 2003, um livro sobre Machado de Assis. Seria uma guinada radical em sua carreira acadêmica?
Longe disso. Nesta entrevista à RHBN, ele explica o que o maior escritor brasileiro tinha em comum com essa classe marginal. Filho de um pintor e de uma imigrante portuguesa, Machado cresceu como agregado em uma casa senhorial. E foi a visão crítica deste mundo de dependência – o Brasil do século XIX – que imprimiu em sua obra.

Já no título, o livro provoca: Machado de Assis, historiador. A idéia era suficientemente polêmica para inquietar os críticos literários. Depois de quase duas décadas dedicadas ao escritor, Chalhoub nem liga para eles: “Machado é interdisciplinar por natureza”. Suas mais recentes descobertas revelam um funcionário público exemplar, a serviço da aplicação e da ampliação da Lei do Ventre Livre e contra a proliferação do latifúndio. “Era mais do que um bom técnico. Acreditava que estava prestando serviços como cidadão”.

Hábil com as palavras, Chalhoub defende a importância de escrever bem para todo historiador, imagina o fascínio que a Internet exerceria sobre Machado e, no fim, nos cobra uma pergunta que faltava: afinal, Capitu traiu Bentinho?

REVISTA DE HISTÓRIA É verdade que você descobriu a questão das relações raciais brasileiras nos Estados Unidos?

SIDNEY CHALHOUB Isso mesmo. Estudei História na UFRJ em um período complicado, meados dos anos 70. O curso vivia sob intervenção. Pessoalmente, não tive problemas políticos, mas assim que surgiu a oportunidade de estudar no exterior, eu aceitei. Concluí o curso de graduação na Lawrence University, em Wisconsin. Foi lá que li pela primeira vez sobre o tema. Era um seminário sobre relações raciais, e o professor sugeriu que eu fizesse um trabalho sobre o Brasil. Para o trabalho de fim de curso, precisei ler a bibliografia sobre o assunto: Gilberto Freyre, Florestan Fernandes... Olhar o Brasil de fora foi muito importante para mim, decisivo inclusive para fazer aflorar meu desejo de virar pesquisador em História.

RH E já voltou de lá com a idéia do livro Trabalho, lar e botequim?

SC Não. Quando voltei, em 1979, tinha a idéia de estudar o problema do negro no Rio de Janeiro. Mas as fontes eram escassas, especialmente sobre o período pós-escravidão. Foi aí que encontrei processos criminais no Arquivo Nacional. Gostei tanto que decidi mudar meu projeto, isso já no primeiro ano do mestrado na UFF. Quis abordar um tema que me permitisse usar aqueles documentos como fonte. É daí que nasce meu primeiro livro.

RH A que você atribui o enorme sucesso do livro?

SC De fato, ele teve uma repercussão imediata. Os anos 1980 foram um período de grande efervescência política. Os movimentos sociais ressurgiam com força. Você tinha movimentos de bairro, as feministas, os homossexuais, os partidos políticos de esquerda e o novo sindicalismo. Ao mesmo tempo, crescia também a idéia de que os sujeitos sociais eram mais variados do que aqueles movimentos. Os historiadores começaram a descobrir novas fontes que permitiam examinar o cotidiano dos trabalhadores de maneira diferente. Acho que o livro despertou interesse porque fazia uma utilização sistemática dos processos criminais e de fontes judiciais para contar a história dos trabalhadores da perspectiva deles. Minha idéia era não só contar uma história a respeito de como foi organizar a vida sem trabalho escravo, mas também analisar o ponto de vista dos trabalhadores sobre o que se fazia com eles.

RH Como assim?

SC Houve um processo em que um trabalhador era acusado de roubar pedaços de carne do açougue onde trabalhava. Ele não entendia exatamente do que estava sendo acusado. Era hábito dos empregados pegar pedaços de carne, que muitas vezes nem estava mais sendo aproveitada. Os trabalhadores achavam que tinham direito àquele tipo de remuneração. E aí, de repente, ele é acusado de furto. Pensar o mundo sem escravidão era um desafio no final do século XIX. É um período em que se criminaliza uma série de condutas que até então eram ligadas aos costumes. A idéia era trazer a própria experiência do trabalhador para o centro da narrativa.

RH O uso da narrativa, por sinal, foi outra inovação daquele livro.

SC Eu acho que não há contradição entre a produção de conhecimento histórico e a construção de uma narrativa mais prazerosa. Escrever é um prazer enorme. E é tão importante quanto pesquisar. História é discurso de demonstração e prova, ao mesmo tempo ciência e arte narrativa. Boa parte do conhecimento está no próprio jeito de narrar. E isso não significa de modo algum tornar o discurso menos complexo. A questão é: não se pode complicar um tema já complexo com um texto rebuscado. Quando você pega aquela obra, lê, decora um parágrafo inteiro e ainda assim não sabe do que se trata, é melhor desistir. Está mal escrito. Não tem desculpa.

RH Mas como a narrativa pode enriquecer o texto de História?

SC A narrativa gera muitas possibilidades de explicação e de especulação sobre o sentido das coisas. Ela é aberta, menos rígida. Permite-me avançar em algumas explicações possíveis que ainda não podem ser imediatamente comprováveis. A narrativa do historiador deve abraçar as dúvidas, as incertezas, as interpretações variadas sobre um fenômeno ou processo histórico. É preciso incorporar essas dimensões da produção do conhecimento, e não varrê-las para debaixo do tapete, produzindo um texto rígido que finge ter certezas.

RH Como surgiu o interesse por Machado de Assis?

SC Aproximei-me do Machado quando escrevia Visões da Liberdade, meu livro sobre escravidão urbana no Rio na segunda metade do século XIX. Quando comecei a reler as obras de Machado, no final dos anos 1980, vi uma relação entre o que lia na literatura e o que estudava em outros tipos de fontes. Em Machado, você tem aquelas figuras senhoriais, como o Bento Santiago de Dom Casmurro e o Brás Cubas das Memórias póstumas. São personagens que enxergam o mundo como uma mera expansão da vontade deles. Em Brás Cubas, por exemplo, Machado nos mostra a maneira como o protagonista era visto pelos dependentes à sua volta. Isso é muito evidente no modo como ele se relaciona com as mulheres. Existem muitas mulheres na vida do Brás Cubas, e todas fazem gato e sapato dele. De modo algum se submetem aos seus caprichos. Em geral, a saída de Brás Cubas é humilhá-las. É o caso de Eugênia: Machado nos faz ver que, embora esteja submetida a um poder senhorial excessivo, ela é capaz de fazer uma leitura política de sua situação e trabalhar o cotidiano de modo a diminuir suas humilhações.

RH Como foi a infância de Machado?

SC As informações a respeito da vida particular são muito restritas. Sabemos que o pai dele era pintor e a mãe, imigrante portuguesa e pobre. Eles eram dependentes em uma família senhorial da Corte. Então Machado passou por essa experiência da dependência pessoal e de ser agregado.

RH Algo muito presente na obra dele.

SC Com certeza. A situação de dependência que ele viveu o ajudou a construir essa visão sobre os marginalizados da sociedade. O curioso é que era mais fácil para Machado discutir essa questão da dependência por meio de personagens femininas. As mulheres de Machado são mais sofisticadas ao lidar com a situação de poder. É interessante quando ele coloca uma mulher na posição senhorial: Valéria, em Iaiá Garcia, exerce a dominação de uma maneira mais hábil, porque, como mulher, parece entender melhor as estratégias dos agregados. Ela age com muito mais autoconsciência e malícia do que Brás Cubas ou Bento Santiago.

RH Seu livro Machado de Assis, historiador causou polêmica ao propor uma nova maneira de interpretá-lo.

SC O que digo é que os romances de Machado foram escritos de modo a fazer com que a análise histórica seja uma das dimensões possíveis de interpretação. E essa é uma contribuição que os historiadores podem trazer a Machado. Ele é coisa séria demais para ser tópico só de críticos literários.

RH Então Machado é assunto interdisciplinar?

SC Ele é interdisciplinar por natureza. A aproximação com sua obra deve ocorrer em várias frentes, sem que uma invalide a outra. Estudá-lo a partir de uma perspectiva histórica não é reducionismo. Eu também poderia facilmente dizer, por exemplo, que uma análise de Machado que se detenha exclusivamente nas relações entre a literatura dele e o moralismo francês dos séculos XVII e XVIII é muito reducionista. O historiador está aí para tornar a obra ainda mais complexa.

RH Em que obra essa interpretação histórica salta aos olhos?

SC Brás Cubas, por exemplo, nos permite fazer uma leitura da História do Brasil daquela época. A maior parte do livro se passa entre os anos 1840 e 1850. O Brás Cubas desse período representa muito das características da sociedade brasileira. Ele faz parte da poderosa classe senhorial. É curioso também o modo como o romance constrói a figura do Quincas Borba. Primeiro ele é descrito como um amigo de infância. Depois, Brás Cubas tem a impressão de que ele é um pouco maluco. Quincas Borba insistia em algumas idéias filosóficas e na questão do humanismo. Idéias então estranhas para o protagonista. Na verdade, o que Machado projeta no Quincas Borba é a visão cientificista, ideologia da moda nos anos 1880. Ao escrever seu romance depois de morto, Brás Cubas passa a adotar essa ideologia e a ver Quincas Borba como um gênio sofisticado, uma espécie de darwinista social avant la lettre.

RH Por que decidiu estudar o funcionário público Machado de Assis?

SC Simples: vi ali uma maneira de articular suas convicções políticas e sua literatura. Uma literatura que me parecia comprometida em expor uma ideologia senhorial arbitrária e violenta. À primeira vista, essas conotações políticas pareciam improváveis em função do que se dizia sobre Machado. Por isso fui atrás do trabalho dele como servidor. Lá a militância era possível e evidente. Primeiro pesquisei a trajetória dele no Ministério da Agricultura. Depois localizei os papéis das seções, das repartições ministeriais nas quais ele trabalhou como funcionário e como chefe.

RH Em que consistia o trabalho dele?

SC Machado lidava com duas questões fundamentais: a política de terras e a escravidão. A repartição em que trabalhava recebia pedidos de concessão de terras e de reconhecimento de titularidades. O papel do ministério era fazer com que fossem respeitadas as regras que existiam e controlar em alguma medida a expansão do latifúndio. No caso da escravidão, o desafio do governo imperial era fazer cumprir a Lei do Ventre Livre, de 1871. Além de estabelecer a liberdade dos filhos de escravos, a lei também determinava que, quando fizessem 8 anos, essas crianças deveriam ser entregues ao governo imperial. Os senhores podiam escolher entre receber uma indenização ou ficar com as crianças até elas completarem 21 anos. As instituições organizadas para ficar com os filhos dos escravos eram obrigadas a dar educação primária a elas. Então, a seção do Machado encaminhou uma consulta pertinente: se as crianças entregues aos estabelecimentos públicos iriam receber instrução primária, os senhores que resolvessem ficar com elas também não deveriam ser obrigados a educá-las? O trabalho de Machado era esse: impor as regras da lei a qualquer custo e, na medida do possível, expandi-las.

RH Ele era um servidor dedicado?

SC Muito. Era um funcionário exemplar. Não tinha faltas e era muito elogiado pelos superiores. Tudo passava por ele. A maioria dos documentos que encontrei não era assinada, mas de vez em quando havia um bilhete do Machado, uma coisa ou outra assinada por ele. Ele participava da interpretação dos problemas relatados e ajudava a encontrar uma solução. Tinha um enorme conhecimento de jurisprudência administrativa e sabia mobilizar as leis existentes para apoiar essa ou aquela solução. Alguns de seus pareceres chegavam a ser estudados pelos demais servidores. Mas Machado era mais do que um bom técnico. Ele acreditava que estava prestando serviços como cidadão. Na percepção dele, o Estado imperial, com todos os seus defeitos, era a única fonte possível de civilização contra a barbárie senhorial.

RH Você está preparando uma nova edição das crônicas de Machado. Qual é a diferença em relação às que já existem?

SC É importante entender que a literatura brasileira do século XIX acontecia pela imprensa. Isso é ainda mais evidente no que se refere às crônicas. Eram textos que, de modo geral, dependiam da relação que estabeleciam com o jornal ou a revista em que eram publicados, a circunstância do momento, os eventos da semana. O próprio Machado nunca reuniu suas crônicas em um volume, pois achava muito difícil fazer isso. As crônicas eram narrativas escritas de modo que o leitor entendesse e identificasse os acontecimentos diários aos quais elas remetiam. Por isso é importante fazer edições comentadas. Minha idéia é tornar estas crônicas frescas de novo, destacando o que havia no entorno delas. Assim podemos analisá-las para investigar as opiniões do Machado sobre os mais variados fatos históricos.

RH Também é importante lembrar que os romances eram publicados aos poucos?

SC Claro. Se uma pessoa olha uma reprodução de Van Gogh, sabe que está vendo uma reprodução de Van Gogh. Mas quando essa mesma pessoa pega a versão em livro de Brás Cubas, acredita estar com a obra na mão. Não está: Brás Cubas foi primeiro publicado em capítulos, na Revista Brasileira.

RH É justa a crítica de que Machado se omitiu diante da escravidão?

SC De modo nenhum. Ele atua em relação ao problema de duas maneiras: primeira, quando é funcionário público e faz cumprir a Lei do Ventre Livre. Naquela época, fazer aplicar esta lei era uma batalha política cotidiana. Outra forma de engajamento se dá por meio da crítica às ideologias que balizavam a escravidão e que depois vão sustentar a reprodução das desigualdades por meio do racismo. Machado era muito cético e criou várias alegorias e histórias satirizando as pretensões da ciência do século XIX.

RH Em que obras isso é mais evidente?

SC Em Brás Cubas, por exemplo, a personagem Eugênia é uma alegoria da desqualificação da ciência racial. Ela é bem-nascida, mas coxa. Machado fazia uma crítica radical às pretensões cientificistas porque percebia que a ciência racial vinha substituir a política de domínio da escravidão. Ele, inclusive, lutou contra o esquecimento da escravidão, já no início do século XX. “Pai contra Mãe” é um conto de 1906, quase 20 anos depois da abolição. Machado começa descrevendo os horrores do tempo da escravidão e depois conta a história de um cara cuja profissão era ser apresador de escravos. Ele localiza e prende uma escrava, grávida de muitos meses, que vivia escondida na cidade. É um conto feito para chocar.


RH Os jovens lêem Machado na escola e, em geral, costumam detestar os romances. Existe uma idade certa para ler Machado?

SC Não é uma questão de maturidade. Na verdade, toda essa aceleração da informação no mundo hoje me parece ter prejudicado a leitura, ou melhor, o tempo dedicado à leitura. O estudante parece ter dificuldade para se concentrar em uma coisa só. Ele vai para a biblioteca com o celular no bolso. E para ler os clássicos, não só Machado, são necessários tempo e atenção. Não estou preocupado, por exemplo, com a Internet. Leio muita coisa no computador, bem devagar, prestando atenção. Um bom leitor se aproveita bem da Internet. A questão é como formar este bom leitor.

RH O que Machado acharia destes tempos de computador e Internet?

SC Acho que ele adoraria ter acesso a esses milhares e milhares de obras disponíveis na Internet. Embora não tenha conhecido a Europa nem os Estados Unidos, Machado era um grande leitor de jornais estrangeiros. Para uma pessoa como ele, a Internet teria sido uma coisa absolutamente fascinante. Poder ler o New York Times todo dia, o Guardian, o Le Monde, jornais africanos, espanhóis... É por isso que digo: a questão não é o suporte, mas o modo de ler. Vocês só não me fizeram a pergunta do senso comum: se Capitu traiu Bentinho. Se tivessem me perguntado, eu teria uma resposta. Perguntem.

RH Capitu traiu Bentinho?

SC Machado não sabia. Essa é a resposta. E por que não sabia? Porque Dom Casmurro é uma especulação, um exercício de interpretação dos sentidos da história. Dom Casmurro é um momento de reflexão sobre a indeterminação da História. O protagonista é aquele membro da classe senhorial, falido no sentido moral, que reflete sobre a experiência da derrota. A indefinição sobre se o adultério aconteceu ou não é uma maneira de Machado sublinhar um futuro aberto. O livro pode ser lido como uma especulação a respeito do futuro daquela sociedade.

Saiba mais - obras do autor:

Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano de trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas: Editora da Unicamp, 2001 (2ª. edição).

CHALHOUB, S.; PEREIRA, Leonardo A. de Miranda; NEVES, Margarida de S. (orgs.). História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.


Saiba mais - Verbetes:
Florestan Fernandes (1920-1995) Sociólogo e político brasileiro. Na USP, foi professor de intelectuais como Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Cassado pelo regime militar em 1969, deixou o país e lecionou em universidades nos EUA e no Canadá. Entre suas obras destacam-se A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá (1952) e A integração do negro na sociedade de classes (1964). Moralismo francês Referência a um grupo de pensadores franceses dos séculos XVII e XVIII que escreviam críticas de costumes. Entre os mais destacados se encontram François de la Rochefoucauld, Jean de La Fontaine, François-Marie Arouet (Voltaire) e Henry Bayle (Stendhal). José Veríssimo Dias de Matos (1857-1916) Jornalista, educador, historiador e crítico literário. Editor da Revista Brasileira, seus estudos foram influenciados pelo evolucionismo e pelo determinismo, evidentes nos escritos sobre a Amazônia, publicados em Estudos brasileiros (1889-1904) e Estudos de literatura (1901-1907).

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Entrevista com o historiador norte-americano Stuart Schwartz


Stuart B. Schwartz

A difícil tarefa de entender o Brasil

“Que país interessante!”, exclamou o jovem estudante de pós-graduação, encantado com “Orfeu Negro”, que assistiu em Nova York nos anos 1960. Chegando ao Brasil por caminhos tortuosos, o historiador norte-americano Stuart B. Schwartz, hoje professor na Universidade de Yale, acabou adotado pela Bahia e se orgulha do título de cidadão da cidade de Salvador.

Versátil, ele não se restringe a um tema: escreveu sobre a economia e a justiça coloniais, disputas entre portugueses e espanhóis, tolerância religiosa, cultura popular, e ainda prepara uma história social dos furacões no Caribe! Entre suas pesquisa recentes, um ivro "saindo do forno" sobre cultura popular e tolerância no mundo ibérico. Documentos descobertos por ele em Portugal mostra, pessoas simples em total desacordo com o rigor religiosos das autoridades da época, gente pobre que acreditava que não havia apenas uma forma de se reacionar com Deus, com os parceiros e, o mais "perigoso" com o Estado.

Além de estudar o passado, Stuart não se furta a observar o presente: ciente das desigualdades sociais geradas no país pelos três sécuos de escravidão, ele não acredita que os problemas possam ser resolvidos por meio da adoção de medidas importadas dos Estados Unidos.

Em Niterói para um colóquio da Companhia das Índias (núcleo de História Moderna sediado na UFF), o professor Schwartz conversou com a Revista de História e, diante do entardecer na Baía de Guanabara, mandou um recado: a maior responsabilidade de cada geração de historiadores é formar outra ainda melhor.

Revista de História – Antes de visitar o Brasil o Sr. já conhecia outros países da América Latina?


Stuart Schwartz – Conhecia o México, mas minha primeira experiência fora dos Estados Unidos foi no Haiti, em 1952. Eu tinha dez anos. Meu pai fazia parte de um grupo dos médicos que iam todo ano a um país diferente para assistir crianças pobres. Lembro ainda da chegada à baía de Porto Príncipe. Era de noite, os tambores soavam. Lembro das luzes da cidade e dos meninos chegando em canoas para pedir esmola ao pessoal dos barcos e mergulhando, para pegar as moedas que atiravam. Foi a minha primeira experiência fora dos Estados Unidos. Foi aí que a América Latina começou a me atrair.

RH – Já se interessava por história nessa época?


SS – Já, mas meu interesse original era por autores de romances históricos – como Dumas, Stevenson e outros. Por influência do meu pai. Além das revistas de medicina, ele só gostava de ler sobre história, não história acadêmica, mas história popular, biografias etc.

RH – Quando o Sr. descobriu o Brasil?


SS – No início dos anos 1960, quando fui fazer mestrado na Universidade de Columbia, em Nova York. Havia um programa de pós-graduação em história da América Latina com o professor Lewis Hanke, grande especialista no assunto. Nessa época, ele achava que o Brasil não era bem estudado nos Estados Unidos. Aconselhado por ele, fiz então um curso intensivo de português, de seis semanas. Este foi o meu primeiro contato com o Brasil. Exatamente nesse período, estavam passando em Nova York dois filmes brasileiros: Orfeu negro e O cangaceiro. Fiquei impressionado: “Mas que país interessante!”. A beleza física, a música, a maneira da gente se comportar na rua, tudo isso bem no momento da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos.

RH – Então deu para o Sr. comparar os dois países...


SS – Fiz uma certa analogia, vi no filme inclusive alternativas à situação das relações raciais no meu país. Foi exatamente nesse sentido que começou meu interesse pelo Brasil. Minha intenção original era trabalhar com o México, um país que eu já conhecia. Mas, muito por influência do Hanke, escolhi como tema de doutorado o Brasil sob o domínio espanhol, a chamada União Ibérica, entre 1580 e 1640. Para isso, era mais importante ir a Portugal do que vir ao Brasil, porque lá estava a documentação mais importante. No final das contas, minha tese de doutorado foi sobre o Tribunal de Relação da Bahia, e não sobre o domínio espanhol no Brasil.

RH – Então o Sr. descobriu o Brasil através de Portugal...


SS – De certa forma sim. Foi em Portugal que conheci os primeiros brasileiros, entre outros Anita Novinsky, Luis Mott e Luiz Henrique Dias Tavares, o grande historiador da Bahia. Todos eram meus conselheiros. Então, quando cheguei aqui, falando com sotaque de português, já conhecia vários brasileiros e tinha contatos por aqui. No Rio, meu primeiro contato foi com o professor José Honório Rodrigues.

RH – O Sr. disse uma vez que esse contato foi bem revelador...


SS – Realmente. Cheguei com uma carta de apresentação do Hanke, porque ele conhecia bem o José Honório. Telefonei do hotel dizendo: “Sou aluno de Louis Hanke e estou aqui no Brasil pela primeira vez. Gostaria muito de conhecer o senhor”. Aí ele disse: “Ah, infelizmente, amanhã eu vou para a América Latina”. Fiquei muito confuso, porque eu acabava de chegar à América Latina, isto é, ao Brasil, e ele estava indo para lá – senão me engano para a Bolívia ou Peru. Essa foi a minha introdução á maneira como os brasileiros se consideram frente à América Latina.

RH – O momento da sua formação acadêmica foi politicamente dramático, especialmente aqui no

Brasil. No seu país, como a Guerra Fria influía no trabalho do historiador?
SS – O Thomas Skidmore, que é um historiador americano muito conhecido aqui no Brasil, disse uma vez: “Somos os afilhados de Fidel”. De uma certa maneira é verdade, porque essa geração universitária americana que estava entrando na pós-graduação no momento imediatamente posterior à Revolução Cubana, em 1959, se deu conta de uma realidade nova. O governo americano estava muito preocupado: “O que aconteceu na América Latina?”; “O comunismo está chegando a América Latina?”. Então investiu mais na educação secundária e concedeu bolsas para estudo do português e do espanhol, coisa que não existia antes. O interessante é que aqueles que foram formados com o apoio do governo, quase todos se voltariam contra ele depois. Nesse sentido Skidmore tem razão: somos de fato os afilhados de Fidel.

RH – Aqui no Brasil o Sr. passava a maior parte do seu tempo em Salvador. Qual foi sua impressão inicial da Bahia?


SS – Acho que para os americanos em geral a Bahia é um pedaço da África separado do continente, um lugar exótico. Há os que se entusiasmam, gostam muito, e outros que detestam, porque acham a Bahia quente, suja etc. Eu de cara entrei para aquele primeiro time. Para mim, a Bahia era um paraíso, lá eu sempre me senti em casa. Por sinal, há uns cinco anos recebi uma homenagem lá em Salvador. Agora, sou um cidadão soteropolitano!

RH – Como naquela música do Gilberto Gil, a Bahia lhe deu régua e compasso, não é assim?


SS – Exatamente. Mas devo também muitas coisas a muita gente, como à minha amiga Neuza Esteves, grande profissional e grande baiana, hoje diretora do arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Ela me ajudou muito quando me voltei para o tema dos engenhos do Nordeste e fui pesquisar em arquivos do Recôncavo Baiano, que nesse tempo não eram muito procurados. Tive a maior sorte, pois encontrei documentos valiosíssimos e totalmente abandonados, na Câmara de Cachoeira.

RH – Não tinham ainda sido descobertos pelos historiadores baianos...

SS – É, infelizmente na Bahia não há um grupo, como aqui no Rio e em São Paulo, concentrado na história colonial. É uma pena, porque a Bahia tem uma riqueza de documentação colonial como não existe em outra parte do país.

RH – O Sr. acha os historiadores brasileiros, em relação aos brasilianistas, davam pouca importância à documentação dos arquivos?


SS – Aconte o seguinte. A historiografia, no Brasil, se dividia entre os filhos de Varnhagen e os filhos de Capistrano, e estes últimos haviam ganho a batalha. Lá pelos anos 1930, o ensaio era o desejo supremo do historiador brasileiro. Sérgio Buarque de Hollanda era um grande historiador, mas sobretudo um ensaísta, que por sinal escrevia muito bem. Casa grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre, não é um livro de arquivo, mas um ensaio. Acho que fiz parte de um período de retorno aos arquivos. Isso não se deu só entre os brasilianistas. O livro de Fernando Novais sobre o antigo sistema colonial, de 1979, é um trabalho de fôlego em matéria de pesquisa. José Antônio Gonsalves de Mello e José Honório Rodrigues também trabalhavam assim.


RH – Na sua opinião, o que unifica a América Latina?


SS – A América Latina é unificada pela sua experiência cronológica. Ela nasceu no momento da Revolução Atlântica, e todos os países daqui compartilham uma certa conexão com as idéias liberais do fim do século XVIII e início do século XIX. A democracia, mesmo durante os períodos autoritários, foi sempre oferecida como um ideal da sociedade. Lembro muito bem que quando Allende foi eleito presidente do Chile. No primeiro discurso, ele falou do processo democrático e da importância constitucional do seu governo. Quando Allende foi deposto pelos militares, a primeira fala de Pinochet foi exatamente igual: “Vamos obedecer a constituição e defender os princípios democráticos”. Então, isso é uma coisa que une a América Latina, assim como a sombra dos Estados Unidos. Esta relação com os Estados Unidos, seja ela boa ou má, tem de ser reconhecida.

RH – O Sr. tem um livro importante sobre o açúcar, lançado aqui com o título Segredos internos. Qual é a conexão entre a produção do açúcar no Novo Mundo e o desenvolvimento econômico europeu?


SS – Confesso que minha intenção com esse livro, no início, era demonstrar que o Gilberto Freyre estava errado, que ele realmente não tinha utilizado documentação dos arquivos, que ele tomava coisas do século XIX e as utilizava para analisar o século XVI. Era uma tentativa de atacar o Gilberto Freyre, foi um erro de juventude. Pouco a pouco eu percebi que, mesmo que tenha muita coisa errada no livro, ele tinha tocado em algo muito central, que é a importância da vida açucareira na formação da sociedade brasileira. Passei muito tempo tentando entender exatamente como que se produzia o açúcar. O título do livro vem de um texto do Marx. Marx dizia que o modo de produção é a chave para entender a sociedade como um todo. Então, é tudo ligado, formam um conjunto. Minha intenção era fazer um livro que vai da plantação do açúcar à produção da riqueza na colônia européia. Só não fiz porque o material não cabia dentro do livro, que chegou a mais de 600 páginas.

RH – Que diferenças o Sr., afinal, conseguiu estabelecer com Gilberto Freyre?


SS – O que falta em Casa grande & senzala é aquela gama de pessoas que não eram nem senhores e nem escravos. O mundo dos engenhos era cheio de vários grupos sociais. Eu acho que a minha contribuição principal é essa: o reconhecimento dos lavradores de cana, as pessoas livres que viviam às margens dos engenhos, artesãos, carreiros, ferreiros, ex-escravos que viviam também no mundo dos engenhos. Tudo isso é bastante ausente no livro de Gilberto Freyre. Ele trata do mundo do senhor e do escravo como se essa fosse a única relação naquela época. Eu acho que a minha contribuição foi aumentar aquela visão do Gilberto Freyre, para incluir essa gente também.

RH – É interessante que o Sr., mesmo que discorde de Gilberto Freyre, parte de um olhar brasileiro para abordar a questão do açúcar...


SS – Exato, meus interlocutores são os historiadores brasileiros, meu trabalho sempre foi feito tendo em vista a historiografia do país. Por exemplo, aquele ensaio sobre os pequenos produtores era uma resposta ao livro do Jacob Gorender sobre o escravismo colonial. Aliás, sempre enfatizo aos meus alunos que eles têm de ler os historiadores da América Latina antes dos historiadores americanos.

RH – Nos seus livros o Sr. dá ênfase às relações raciais no Brasil. Como elas interferiam na nossa sociedade?


SS – Não há relação social de hierarquia no Brasil que não seja marcada pela raça. Uma olhada rápida no mapa da distribuição da renda hoje mostra que a idéia de que aqui não existe racismo é um mito. Então, é impossível pensar a história do Brasil sem pensar na divisão racial no país e na maneira como o país, o povo e seus vários governos trataram de superar as divisões criadas pelo legado de escravidão. É a mesma coisa nos Estados Unidos. Só que a importação de modelos americanos para resolver essa questão não é a melhor saída para o Brasil – nem para a sociedade nem para o movimento negro. O contexto social é diferente nos dois países, e isto tem que ser reconhecido.

RH – Os grupos afro-descendentes no Brasil devem então se afirmar por meio de soluções próprias?

SS – Sim, acho que a afirmação da identidade étnica é uma escolha de cada pessoa. Pessoalmente, não gosto de discriminação de qualquer espécie, sobretudo quando baseada em questões de herança, seja ela da origem nacional, da cor da pele ou qualquer outra. Talvez o problema seja mais social do que racial, é uma questão muito complicada. Veja a diferença entre as políticas americana e francesa sobre o multiculturalismo – as duas têm produzido dificuldades, não sei qual é a melhor. Isso depende do contexto de cada sociedade. Cada sociedade deve busca a saída, a maneira de resolver as desigualdades que a economia social produziu.

RH – Além da questão racial há a tradição da cultura letrada, da magistratura, das hierarquias pesando na nossa história. Como isso afetou a sociedade brasileira?


SS – Como eu digo no prefácio do meu primeiro livro, no Brasil, quando uma coisa é considerada boa, diz-se que é “legal” [risos]. Isto mostra a importância da lei, do direito. Mas, ao mesmo tempo, lembro das palavras de Rui Barbosa – de que quando a justiça falta à mentalidade do juiz, não há esperança para o país – e daquele ditado antigo português – “Para os amigos, a justiça; para os inimigos, a lei”. Então, a lei escrita, que vem da tradição romana, é muito importante, mas sua boa aplicação também, senão descamba-se para a corrupção e o personalismo. A história do Brasil sempre foi assim. Nunca faltaram boas leis, o que faltou foi o desejo de aplicá-las com justiça. Se bem que a corrupção, seguramente, não é um problema só brasileiro. Meu país, no momento, atravessa sérias dificuldades nessa área.

RH – O Sr. está escrevendo algum livro novo?


SS – Sim, já está no prelo. Intitula-se Sua lei – salvação e tolerância no mundo atlântico ibérico. É sobre pessoas que, enquanto os padres diziam que a salvação só era possível dentro da Igreja, tinham idéias próprias sobre religião, sobre o corpo, sobre o sexo. Descobri isso pesquisando documentos da Inquisição em Portugal. No final, chegando ao século XVIII, essas idéias começam a crescer, e pessoas aqui no Brasil começaram a pensar em liberdade de consciência: “Eu quero pensar o que quero e pronto”. Afinal, essas idéias ligaram-se às idéias de liberdade política, que era a grande ameaça ao Estado e ao altar.

RH – Era o pensamento radical da época...


SS – Radical, muito radical. E o mais interessante, para mim, é que isso não vinha de cima para baixo, não era idéia de humanistas, de um Erasmo, por exemplo, de um Locke ou de um Voltaire. Os dissidentes eram alfaiates, ferreiros, pessoas que podiam até saber ler e escrever mas não tinham formação universitária nem teológica. Chegavam a essas conclusões só pelo raciocínio. Não viam sentido na idéia de que o Deus misericordioso apregoado pela religião oficial pudesse mandar tanta gente para a fogueira.

RH – A tolerância de que o Sr. fala no livro se refletiu aqui, no momento em que o Estado brasileiro se organizava?


SS – Apesar do título, meu livro não é um argumento de que se tratava de uma sociedade tolerante. Pelo contrário, toda a força do governo e da Igreja era contra a tolerância. Mas, mesmo assim, o impressionante é que existiam essas idéias de tolerância, e que elas, talvez, abriram a mentalidade dos colonos que chegaram aqui, no sentido de considerar que, além do que a Igreja pregava, havia outras maneiras de chegar ao sobrenatural.

RH – Parece que ainda hoje é assim...


SS – Ah, sim... Quando eu vivia na Bahia, presenciei um caso bem interessante. Aconteceu numa repartição pública. Entrei numa sala e estava tudo desarrumado, cheia de papéis pelo chão. “Pô, que horrível isso aqui, tudo sujo, o que está acontecendo?” Aí uma amiga explicou: “É que a encarregada da limpeza às vezes não aparece, mas ninguém mexe com ela, porque ela é mãe-de-santo”. Isso não é tolerância?

RH – O Sr. continua dando aulas sobre o Brasil no seu país?


SS – Dou um curso em Yale sobre o Brasil. Um curso rápido: toda a história do Brasil, de 1500 até o presente, em um semestre! [risos]. Acho que a responsabilidade de cada geração de historiadores é fazer a próxima geração melhor, em termos de metodologia, conhecimento, produção etc. A medida do sucesso da minha carreira não é simplesmente a minha produção, mas a produção da próxima geração de historiadores.

RH – Depois de tanto tempo e tantas mudanças, o Brasil continua a lhe fascinar?


SS – Cada vez mais. Na primeira aula, projeto sempre dez minutos de Orfeu negro, com aqueles morros do Rio de Janeiro, aquele papagaio cantando Tristeza não tem fim. Meus alunos gostam muito, o que não me surpreende. Como alguém pode não gostar de um país como este?

Publicado no site da Revista de História da Biblioteca Nacional em 2007.